Este posicionamento da ministra Cármen Lúcia, a preservar a segurança jurídica, foi acompanhado quase à unanimidade de membros do Tribunal, vencido o ministro Marco Aurélio. O ponto central de divergência foi quanto à fixação da data a partir da qual o ato de infidelidade teria como conseqüência a perda do mandato: se da data da resposta pelo TSE à Consulta 1.398; ou se a partir do mencionado julgamento pelo STF, meses mais tarde. Prevaleceu a primeira hipótese, considerado o fato de que na resposta àquela consulta já ficou expressa a conseqüência, tendo o deputado trânsfuga assumido o risco do entendimento ser ratificado pelo egrégio STF.
Leia-se, a propósito, importante passagem do voto do ministro Gilmar Mendes, após aprofundado estudo em Direito Comparado sobre a incidência princípio da segurança jurídica contra a retroatividade de alterações jurisprudenciais:
Com essas considerações, diante da mudança que se opera, neste momento, em antiga jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, e com base em razões de segurança jurídica, entendo que os efeitos desta decisão devam ser modulados no tempo. Creio que o marco temporal desde o qual tais efeitos possam ser efetivamente produzidos deve coincidir com a decisão do Tribunal Superior Eleitoral na Consulta n° 1.398/2007, Rel. Min. César Asfor Rocha, que ocorreu na Sessão do dia 27 de março de 2007.
(STF - MS 26604, Trecho do voto do Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, DJe-187 03-10-2008)
Como se vê, exatamente quanto a mandatos eletivos proporcionais, o Supremo Tribunal Federal preservou a segurança jurídica contra a evolução jurisprudencial. E foi justamente por isto que os parlamentares infiéis, mas cujos atos de infidelidade ocorreram antes da data fixada naqueles julgamentos, não sofreram qualquer conseqüência jurídica da evolução da jurisprudência, senão o fato de que não seriam mais tolerados novos atos de infidelidade partidária.
Também o ministro Cezar Peluso observou a necessidade, naquele julgamento, de se modular os efeitos da nova interpretação constitucional:
O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – Se Vossa Excelência me permite, quero até confortar o eminente Ministro e dar uma certa tranqüilidade a essas preocupações de Sua Excelência, dizendo que jamais passou pela cabeça de nenhum Ministro deste Suprema Corte que, após decidir, numa votação recente, a mudança de jurisprudência pacífica a respeito da prisão civil dos fiduciantes na alienação fiduciária, ser ilegítima e ilícita, tomar isso como fonte de ação de indenização contra as fiduciárias e contra o Estado por todas as prisões decretadas sob o império da legislação anterior.
(STF - MS 26604, Trecho de debates, manifestação oral do Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, DJe-187 03-10-2008)
O ministro Joaquim Barbosa, apesar de ter votado pela denegação da segurança nos casos de infidelidade partidária, assentou que, acaso concedidas as seguranças no MS 26.602, MS 26.603 e MS 26.604, dever-se-ia respeitar a segurança jurídica, prospectando os efeitos da decisão:
Caso se venha a atingir a maioria pela concessão da segurança, acolho na integralidade, por maiores que sejam as dificuldades que ela engendra, a proposta do Procurador-Geral da República no sentido de que a decisão só procuza efeitos ex-nunc. O que me comanda a fazê-lo é, sobretudo, o princípio da segurança jurídica, uma vez que em pelo menos três precedentes, um deles já com a presença de boa parte da atual composição, esta Corte decidiu que a Constituição Federal não autoriza a perda de mandato do eleito que pratica infidelidade partidária ou se desfilia do partido pelo qual foi eleito.
(STF - MS 26604, Trecho do voto do Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, DJe-187 03-10-2008)
O ministro Celso de Mello foi categórico na redação da ementa do MS 26.603, julgado em conjunto com o MS 26.602 e MS 26.604:
REVISÃO JURISPRUDENCIAL E SEGURANÇA JURÍDICA: A INDICAÇÃO DE MARCO TEMPORAL DEFINIDOR DO MOMENTO INICIAL DE EFICÁCIA DA NOVA ORIENTAÇÃO PRETORIANA. – (...) Os postulados da segurança jurídica e da proteção da confiança, enquanto expressões do Estado Democrático de Direito, mostram-se impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, inclusive as de direito público, sempre que se registre alteração substancial de diretrizes hermenêuticas, impondo-se à observância de qualquer dos Poderes do Estado e, desse modo, permitindo preservar situações já consolidadas no passado e anteriores aos marcos temporais definidos pelo próprio Tribunal. Doutrina. Precedentes. (...)
(STF - MS 26603, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 04/10/2007, DJe-241 19-12-2008)
Ao decidir monocraticamente uma ação cautelar, o ministro Gilmar Mendes asseverou a necessidade especial de observância da segurança jurídica em matéria eleitoral:
O quadro fático apresentado nestes autos está a revelar uma séria questão constitucional que envolve um princípio muito caro no Estado de Direito que é a segurança jurídica. Parece extremamente plausível considerar, tal como fez o autor, que mudanças jurisprudenciais ocorridas uma vez encerrado o pleito eleitoral não devam retroagir para atingir aqueles que dele participaram de forma regular (conforme a interpretação jurisprudencial das normas eleitorais vigentes à época do registro de sua candidatura) e nele se sagraram vitoriosos.
(STF - AC 2788-MC, Relator: Min. GILMAR MENDES, decisão monocrática, ainda pendente de publicação em 03/03/2011)
Em outro julgamento, também em processo de natureza subjetiva, mas não em matéria eleitoral, o Tribunal acolheu o voto do ministro Ayres Britto para conceder efeitos prospectivos à alteração da jurisprudência em matéria de conflito de competência, de forma a preservar os atos praticados por autoridade que se passou a entender incompetente:
O Supremo Tribunal Federal, guardião-mor da Constituição Republicana, pode e deve, em prol da segurança jurídica, atribuir eficácia prospectiva às suas decisões, com a delimitação precisa dos respectivos efeitos, toda vez que proceder a revisões de jurisprudência definidora de competência ex ratione materiae. O escopo é preservar os jurisdicionados de alterações jurisprudenciais que ocorram sem mudança formal do Magno Texto. (STF - CC 7204, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 29/06/2005, DJ 09-12-2005)
Note-se bem que o ministro Ayres Britto assevera que o Tribunal não apenas pode, mas deve respeitar a força dos precedentes contra a evolução jurisprudencial, como aplicação do princípio da segurança jurídica.
Ao se afirmar, genericamente, a necessidade de respeito à segurança jurídica, sequer é imprescindível o enfrentamento de controverso tema sobre a incidência do artigo 16 da Constituição da República contra a evolução jurisprudencial, e não apenas contra lei formal. Bastaria a aplicação em abstrato do princípio da segurança jurídica, positivado na Constituição por artigo 5° XXXVI, e reinante sobre todo o ordenamento jurídico, para concluir ser necessário a aplicação prospectiva da nova interpretação constitucional, de forma a não repercutir nos mandatos conquistados em eleições ocorridas em data anterior à decisão.
Mas, enfrentando a questão do artigo 16 da Constituição, deve-se primeiro compreender a leitura feita pelo Supremo Tribunal Federal do texto constitucional, a compreendê-lo não em seu literalidade, mas em sua essência. Tanto é assim que no julgamento da ADI 3.685 (Rel. Min. Ellen Gracie, julgado em 22/03/2006, DJ 18-08-2006), este eg. Tribunal assentou que o termo “lei” constante do texto da Constituição não deveria ser considerado de forma stricto sensu, mas de forma mais ampla, a apanhar inclusive o Poder Reforma, que naquele caso promulgou a EC 52/06.
Ainda antes de enfrentar o tema, vale citar Carlos Cóssio, para quem “As mudanças de interpretação assemelham-se à substituição das leis”(COSSIO, Carlos apud COELHO, Inocêncio Mártires. Da hermenêutica filosófica à hermenêutica jurídica: fragmentos. São Paulo: Saraiva, 2010