POR LEANDRO FORTES, DE SÃO LUÍS
Uma cruzada comandada pela Igreja Católica prepara-se para assediar a mais importante cidadela política do clã Sarney no Maranhão: o Poder Judiciário. Senhor das indicações do Tribunal de Justiça, o senador José Sarney (PMDB-AP) está prestes a amargar um ataque generalizado contra apadrinhados de toga que, revezados ao longo de quatro décadas, tem garantido à família governar quase sem oposição no estado. Chefiado pela Cáritas, entidade vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), voluntários maranhenses formaram o Tribunal Popular do Judiciário e prometem fazer barulho no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), às vésperas das eleições.
Entre julho e dezembro de 2009, o Tribunal Popular percorreu cinco regiões do Maranhão em caravanas cívicas dispostas a levar adiante a missão inédita de tomar, filtrar e transcrever mais de 2 mil depoimentos entre a população miserável do estado mais pobre do País. Dessa empreitada de seis meses brotou um relatório com cerca de 600 denúncias, classificadas em 18 tipos, contra desembargadores, juízes e promotores maranhenses envolvidos em crimes que vão do uso ilegal de diárias e abuso de poder à pedofilia.
A iniciativa do Tribunal Popular é um trabalho inédito no Brasil, país onde o aparelhamento político dos Judiciários e das políticas estaduais é a mais antiga e poderosa arma das elites locais para se manter no poder. Movimentos sociais da Bahia, Ceará e Rio Grande do Sul manifestaram à Cáritas o desejo de copiar a ideia dos maranhenses a partir de 2011.
O texto final sobre as sombras do Tribunal de Justiça do Maranhão será encaminhado até 15 de setembro ao ministro Cezar Peluso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do CNJ, para ser apreciado por ele e pelos conselheiros. “Decidimos mexer nos brios desse Judiciário arrogante que só age quando o réu é inimigo da família Sarney, principalmente quando se trata de trabalhadores rurais”, acusa, sem rodeios, Ricarte Santos, secretário-executivo da regional maranhense da Cáritas Brasileira e coordenador do Tribunal Popular. “No Maranhão, o povo e os movimentos sociais têm mais medo de juiz que do demônio”.
Não será a primeira vez que o CNJ se verá diante das mazelas do Judiciário maranhense. No ano passado, o corregedor-geral do conselho, o ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), fez publicar uma auditoria realizada no TJMA, em novembro de 2008, de arrepiar. O então presidente do tribunal, Raimundo Cutrim, havia sido obrigado a reduzir a jornada de trabalho local para poder acomodar todos os parentes e apaniguados de magistrados com direito a contracheque na corte maranhense. Alguns moravam a 500 quilômetros da capital, São Luís.
O desembargador Cutrim é o atual presidente do TRE e, portanto, será o árbitro da sempre conturbada eleição estadual maranhense. Trata-se de evento singular no qual, há 45 anos, o clã do ex-presidente José Sarney sempre ganha, no voto ou no tapetão. Em abril de 2009, Roseana Sarney (PMDB), derrotada em 2006, foi outra vez entronizada no Palácio dos Leões, graças à cassação do oposicionista Jackson Lago (PDT), por decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Agora, concorre à reeleição, com apoio formal de um constrangido PT local, contra o deputado Flávio Dino (PCdoB).
Um sobrinho de Cutrim, o promotor José Ribamar Froz Sobrinho, foi beneficiado por uma vaga extra criada no Tribunal de Justiça do Maranhão preenchida por Roseana Sarney. A indicação de Froz Sobrinho (ou “Froz, o Sobrinho”, como é chamado pelas costas) não levou em conta sequer a ficha do candidato, que responde no Ministério Público Estadual a três processos administrativos por coação de testemunha, subtração de papeis públicos e advocacia administrativa. Froz também é sobrinho do conselheiro Edmar Cutrim, ex-presidente do TCE, outro sarneysista de carteirinha.
Até a chegada do CNJ ao Maranhão, dois anos atrás, 120 representações haviam sido feitas contra magistrados maranhenses, sem resultado algum. No máximo, por causa da ação do conselho, cinco desembargadores do Tribunal de Justiça foram obrigados a devolver diárias recebidas indevidamente aos cofres públicos. Entre eles, Nelma Sarney, então corregedora do TRE, cunhada do senador Sarney. Mesma punição foi aplicada ao corregedor-geral à época do tribunal, Jamil Gedeon, por uso indevido de dinheiro de diárias, expediente que tem se revelado um manancial permanente de corrupção no TJMA. Para espanto de quem não vive no Maranhão, Gedeon sucedeu Cutrim e tornou-se, em 2010, presidente do tribunal.
Gedeon fez fama como procurador-geral de Justiça de Roseana Sarney, entre 1998 e 2000, quando passou a ser conhecido como “engavetador” da família Sarney, uma alusão ao ex-procurador-geral da República Geraldo Brindeiro, malfadado pelo apelido de “engavetador-geral da República” de Fernando Henrique Cardoso, por conta do hábito de trancar ações contrárias ao interesse do ex-presidente tucano no Ministério Público Federal. Gedeon também é conhecido no Maranhão como “o Brindeiro que deu certo”, porque ao contrário do desafortunado colega de Brasília, que sonhou em vão ser ministro do STF, o procurador maranhense acabou agraciado com uma vaga de desembargador no Tribunal de Justiça.
O caminhão de documentos e depoimentos produzidos pelo Tribunal Popular do Judiciário revela uma relação feudal entre os magistrados, sobretudo os ligados à oligarquia dos Sarney, e às populações miseráveis do Maranhão. Em alguns locais, como o municípios de Santa Luzia, a audiência pública contou com 500 pessoas numa sala da igreja local, quando se desfiou uma centena de denúncias de prisão, espancamento público e torturas policiais atribuídas ao arbítrio de uma juíza, Maricélia Gonçalves, e de um promotor, Joaquim Ribeiro de Souza Júnior, acusados nominalmente. Em 2008, o fórum da cidade foi incendiado antes da chegada dos fiscais do CNJ, uma literal queima de arquivo, a fim de evitar a fiscalização dos abusos do Judiciário na comarca.
De acordo com o relatório da Cáritas, no município de Maracaçumé, a professora Maria Divina da Silva Araújo foi presa, em 2009, acusada de “falar alto demais” diante da juíza Débora Jansen Castro. Algemada, foi metida em um camburão e levada à delegacia. A professora milita em pastorais sociais e de direitos humanos. Ela só foi libertada depois que a Cáritas encaminhou o caso à Corregedoria de Justiça e à Procuradoria-Geral de Justiça do estado. “O Poder Judiciário, no Maranhão, vive à margem da lei, da democracia e da República”, diz o juiz Jorge Moreno. “É o último bastião do conservadorismo, do atraso e da monarquia”.
Curiosamente, Moreno é o único juiz punido, até hoje, no Maranhão, justamente por ter ousado se contrapor aos interesses da família Sarney. Primeiro, conseguiu, como juiz da comarca de Santa Quitéria, no sertão maranhense, zerar o déficit de registro civil na região. Graças a isso, foi premiado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos e reconhecido pela Organização das Nações Unidas. Ato contínuo, denunciou a apropriação do Programa Luz Para Todos pelo grupo político de Sarney. Resultado: no ano passado, foi aposentado compulsoriamente, acusado de “atividade político-partidária”.
Nem todos os juízes são tratados a ferro e fogo. Em agosto do ano passado, o juiz Marcelo Baldochi, da comarca de Bom Jardim, comandou pessoalmente o despejo de famílias de trabalhadores rurais em terras tomadas por ele. Na desocupação, feita pela Polícia Militar, uma criança de 3 meses teve a perna quebrada quando a mãe foi interceptada por cassetetes da PM do Maranhão. Além disso, Baldochi foi acusado pelo Ministério Público de manter trabalhadores em regime de escravidão na fazenda ocupada, mas foi absolvido três meses depois pelos desembargadores do TJ.
Outro juiz, Fernando Barbosa de Oliveira Júnior, titular da comarca de Barreirinhas, região dos Lençois Maranhenses, é investigado pela Polícia Federal, por participar de grilagem de terras públicas da União na região. Oliveira Jr., fiel à tradição nepotista local, é sobrinho do desembargador Jorge Rachid, também acusado de desviar dinheiro de diárias, no tribunal. A CartaCapital, por e-mail, Rachid afirmou não possuir “nenhuma ligação profissional” com o sobrinho. O juiz acusado de grilagem se mantém no cargo. O funcionário que o denunciou, Pedro Leal, foi obrigado a recorrer ao Progama Federal de Proteção a Testemunhas. Outros magistrados encaminharam, via assessoria de imprensa, respostas formais nas quais negam as acusações.
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